A OFENSIVA MILITAR DOS ESTADOS UNIDOS NA AMÉRICA LATINA
-- Maria Luisa Mendonça
A consolidação do domínio econômico e militar da América Latina tem sido uma das principais prioridades do governo dos Estados Unidos. O crescente processo de militarização no Continente tem como objetivo assegurar o controle de recursos naturais, principalmente na região amazônica, e manter a dependência econômica dos países latino-americanos.
No âmbito financeiro, a dependência latino-americana se perpetua através de uma dívida externa ilegítima e da criação de novos mecanismos de dominação econômica, como a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). A vertente financeira do imperialismo estadunidense é apoiada por um grande aparato militar.
Após os atentados em Nova York e Washington, em 11 de setembro de 2001, o governo de George W. Bush acelerou sua escalada militar em todo o mundo. Na América Latina, a estratégia dos Estados Unidos inclui a instalação de novas bases militares e o reforço de bases já existentes, o treinamento de militares latino-americanos, a venda de armas, a instalação de sistemas de vigilância e espionagem, além da influência sobre o poder judiciário em países latino-americanos. Essa política visa manter o modelo neoliberal, defender os interesses de grandes empresas e garantir o controle de recursos naturais, principalmente petróleo, água e biodiversidade.
A poderio militar dos EUA é um dos principais instrumentos de recolonização da América Latina. O crescente processo de militarização no continente tem gerado o aumento das violações de direitos humanos e da repressão a movimentos sociais, o deslocamento e a migração forçada de milhões de pessoas, a destruição do meio-ambiente, a perda da soberania e da autodeterminação dos povos.
O principal mecanismo dos EUA para garantir seu domínio econômico e geopolítico é expandir sua força militar em todo o mundo o que representa um grande perigo para a humanidade.
Além do grande aumento do orçamento do Pentágono, que chega a 400 bilhões de dólares, o governo de Bush tem dado sinais claros de seu autoritarismo. Por exemplo, a administração de Bush rechaçou a Convenção de Armas Biológicas e, ao mesmo tempo, realiza testes ilegais com essas armas, além de recusar o acesso de inspetores em seus laboratórios. Os Estados Unidos rechaçaram também o Tratado sobre Mísseis Antibalísticos, a Convenção da ONU sobre Tortura (para evitar a investigação de tortura contra prisioneiros na Base de Guantánamo), e pretende violar o Tratado Contra Testes Nucleares. Além disso, a CIA reforça suas operações clandestinas, e inclusive admite a possibilidade de assassinar governantes, como já declarou em relação a Saddam Hussein.
O governo estadunidense necessita manter uma situação de "guerra infinita" para justificar a existência de seu aparato militar e consolidar sua posição de império. Na América Latina, os EUA intensificam esse processo através da instalação de bases militares como no caso de Manta (Equador), Três Esquinas e Letícia (Colômbia), Iquitos (Peru), Rainha Beatrix (Aruba) e Hato (Curaçao). Essas bases complementam o cerco dos EUA no Continente, que também possui bases militares em Porto Rico (Vieques), Cuba (Guantánamo) e Honduras (Soto de Cano). Os EUA pretendem ainda construir bases militares em El Salvador e na Argentina (na Terra do Fogo), assim como controlar a base de Alcântara, no Brasil.
A região de Alcântara é considerada uma das "portas de entrada" para a amazônia brasileira e está localizada no estado do Maranhão. Essa área foi inicialmente habitada por índios Tupinambá. Os franceses colonizaram a região no final do século XVI e mantiveram sua dominação até 1616, quando veio a colonização portuguesa. A economia local, baseada na produção de algodão e cana-de-açúcar, era exercida com mão-de-obra escrava indígena e africana.
No final do século XIX, a queda do preço do açúcar e as pressões pela abolição da escravatura causaram a falência dos engenhos em Alcântara, e a maioria dos proprietários abandonou suas terras. Nesta época, formaram-se vários quilombos naquela região, constituídos pela população negra e indígena.
Os quilombos são comunidades tradicionais, com culturas, formas de produção e regras internas próprias. As terras de remanescentes de quilombos são coletivas e a produção é comunitária. Não existem lotes individuais e a plantação é feita de acordo com as condições do solo. Por exemplo, as comunidades organizam roças coletivas de arroz, milho, feijão, mandioca, etc.
A importância histórica e cultural das comunidades remanescentes de quilombos, não somente em Alcântara mas em todo o país, fez com que a Constituição brasileira de 1988 reconhecesse o direito aos seus territórios. O Brasil tem mais de mil comunidades remanescentes de quilombos. Porém, desde outubro de 1988, apenas 1,8% dessas áreas foram tituladas.
A área territorial de Alcântara soma 114 mil hectares. São cerca de 19 mil habitantes, sendo que a maioria descende de remanescentes de quilombos e indígenas. Quase 80% da população vive na zona rural e sobrevive da pesca, agricultura e do extrativismo, praticados de forma artesanal e tradicional. Alcântara faz parte da Área de Proteção Ambiental das Reentrâncias Maranhenses e está nos limites da Amazônia Legal. A região é rica em biodiversidade e recursos naturais.
Há cerca de 20 anos, o governo militar instalou o Centro de Lançamento de Alcântara, com o objetivo de desenvolver a tecnologia espacial brasileira. Para isso, foram desapropriados 62 mil hectares de terras mais da metade de todo o território de Alcântara causando o deslocamento de dezenas de comunidades remanescentes de quilombos.
Atualmente, outras comunidades têm sido ameaçadas de deslocamento, caso seja aprovado o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas, através do qual o Brasil concede a utilização da Base para os Estados Unidos. O acordo entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos foi firmado em abril de 2000, mas o Congresso Nacional exigiu que passasse por sua aprovação. Atualmente, o documento está sendo analisado pela Câmara dos Deputados. O acordo estabelece diversas obrigações para o Brasil e nenhuma para os Estados Unidos, além de ferir a soberania nacional em diversos aspectos, entre eles:
O acordo irá permitir o uso comercial das instalações do Centro de Lançamento de Alcântara, a ser explorado prioritariamente pelo setor privado, o que contradiz o argumento utilizado originalmente para a desapropriação da área, que alegava o desenvolvimento da tecnologia espacial brasileira, ou seja, seria de interesse público.
A questão fundamental em relação ao acordo diz respeito a tentativa de expansão do controle militar dos Estados Unidos na região amazônica. Sabemos que o governo estadunidense acelera sua estratégia militar na região, que inclui o treinamento de militares latino-americanos, como no caso da Operação Cabañas, realizada na Argentina com a participação de 1500 oficiais dos EUA, Chile, Brasil, Bolívia, Equador, Paraguai, Peru e Uruguai.
Segundo documentos do governo argentino, o objetivo desse treinamento seria criar um "comando militar unificado" para combater o "terrorismo na Colômbia, além de um campo de batalha composto por civis, organizações não-governamentais e agressores potenciais". A mídia estadunidense colabora com esse processo. Por exemplo, um artigo de 23 de outubro de 2002, publicado no jornal Miami Herald, defende a necessidade da criação de uma Força Militar Sul-Americana para lutar contra a guerrilha na Colômbia e para "lidar com ameaças internas semelhantes no futuro".
Esse comando atuaria ainda na região da Tríplice Fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina. A autorização para a entrada de tropas estadunidenses na América Latina inclui garantias de imunidade diplomática, o que significa que soldados norte-americanos suspeitos de crimes ou violações de direitos humanos não poderiam ser julgados em países latino-americanos.
Além disso, os EUA continuam treinando militares latino-americanos na Escola das Américas e criaram a Academia Internacional para o Cumprimento da Lei, na Costa Rica, com o objetivo de influenciar a legislação dos países da região em benefício de seus interesses políticos, econômicos e militares.
Outra forma de controle por parte dos Estados Unidos é a instalação de mecanismos como o SIVAN (Sistema de Vigilância da Amazônia), um projeto de 1.4 bilhões de dólares, realizado pela empresa norte-americana Raytheon, com capacidade de monitorar 5,5 milhões de Km. O SIVAN prevê ainda a compra de aviões de guerra, como o Tucano A-29. Na Argentina, o Pentágono também planeja criar o Plano Nacional de Radarização, como parte de um Sistema Internacional de Vigilância.
Essa escalada militar fortalece a indústria bélica norte-americana. Por exemplo, a estrutura da Base de Manta, com capacidade de controlar o espaço aéreo em um raio de 400 Km, está sob a responsabilidade da empresa DynCorp, acusada de envolvimento com a CIA. A Base de Manta será equipada com grandes jatos E-3 Awacs, com caças F-16 e F-15 Eagle, para controle da região Amazônica, do Canal do Panamá e da América Central. Outras empresas bélicas e de tecnologia militar, como a Raytheon e a Northop, estimam um aumento de 50% em seu lucro esse ano.
Os Estados Unidos aceleram também o Plano Colômbia, que inclui um aparato de 1.3 bilhões de dólares, sendo que o Secretário de Estado dos EUA, Colin Powell, pretende garantir mais US$731 milhões para financiar a participação do Equador, Bolívia e Peru nas operações militares. Os principais focos de violência na Colômbia, que causam a expulsão da população indígena e camponesa de suas terras, coincidem com as regiões mais ricas em biodiversidade. O Plano Colômbia facilita a implementação de mega-projetos hidroelétricos, petrolíferos e de mineração, patrocinados pelo Banco Mundial e por empresas multinacionais. Mais de um milhão de hectares da floresta colombiana já foram contaminados por agentes químicos e o número de refugiados internos chega a dois milhões de pessoas, sendo que 75% são mulheres e crianças.
Ao mesmo tempo, os espaços de sobrevivência da população pobre, como sociedade civil, estão cada vez mais limitados naquele país. A abertura dos mercados e a queda dos preços de produtos agrícolas geraram uma grave crise no meio rural, levando muitos camponeses a cultivar a folha de coca como única opção de sobrevivência. O desemprego e a ausência de serviços básicos de moradia, saúde e educação estimularam o poder do narcotráfico, gerando uma espécie de economia paralela. Hoje, milhares de jovens colombianos são obrigados a optar pelo alistamento nas Forças Armadas, paramilitares ou nas guerrilhas. Estima-se que o nível de desemprego na Colômbia seja de pelo menos 20% e, entre os trabalhadores, 80% ganha menos de dois salários mínimos. Consequentemente, 60% da população vive em situação de pobreza.
A estratégia de dominação estadunidense na América Latina inclui também acordos comerciais regionais, como o Plano Puebla-Panamá um projeto transnacional de construção de um canal terrestre ligando o sul do México até a América Central, passando pela Guatemala, Belize, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica e Panamá. Essa região é rica em biodiversidade e recursos naturais, além do projeto possibilitar a utilização de mão-de-obra barata e não sindicalizada.
O Plano Puebla-Panamá prevê a construção de um complexo de maquiladoras, ou linhas de montagem, controlado por empresas multinacionais. As maquiladoras também são conhecidas como "processadoras para exportação", localizadas nas chamadas "áreas de livre comércio". Esse tipo de empresa começou a ser implantado no norte do México em 1965, através de um programa de industrialização na fronteira com os Estados Unidos. Essas empresas se multiplicaram a partir de em 1994, com o início do NAFTA (Acordo de Livre Comércio entre o México, os Estados unidos e o Canadá). Existem hoje cerca de quatro mil maquiladoras no México, produzindo principalmente acessórios eletrônicos, equipamentos mecânicos, produtos têxteis, sapatos, brinquedos, comida enlatada e produtos químicos. A maior parte do capital, da matéria prima e do gerenciamento dessas empresas é estrangeira, e quase toda a produção é exportada, sem tributação.
Diversas organizações têm denunciado violações de direitos trabalhistas nas maquiladoras, como a repressão à organização de sindicatos, horas extras forçadas e maus-tratos. Como 60% da mão-de-obra é formada por mulheres, frequentemente se registra casos de abuso sexual. Além disso, as mulheres são obrigadas a apresentar testes de gravidez como condição de contratação. Aquelas que engravidam e continuam trabalhando correm o risco de gerar crianças com deficiências físicas, causadas por sua exposição a agentes químicos. Segundo uma pesquisa do Comite de Apoyo Fronteirizo Obrero Regional (CAFOR), 76% das trabalhadoras apresentam dores pulmonares e 62% desenvolvem alergias e doenças de pele, em consequência do constante contato com produtos químicos.
Além das precárias condições de trabalho, a média salarial nas maquiladoras é de somente três dólares por dia. Normalmente os trabalhadores vivem nas chamadas "colônias" ou em favelas, sem saneamento básico, eletricidade ou água encanada. A destruição ambiental é comum nessas áreas, como no caso da cidade de Matamoros, na fronteira com o Texas, onde se encontram empresas como a General Motors e AT&T. Após a chegada das maquiladoras nessa região, verificou-se que o nível de agentes químicos nas fontes de água potável estava 50.000 vezes maior. De acordo com a organização Texas Center for Policy Studies, as maquiladoras foram responsáveis pelo depósito de aproximadamente 8.000 toneladas de agentes poluentes na fronteira do México com os Estados Unidos, somente em 1996.
A instabilidade dos empregos nas maquiladoras somada as políticas de privatização de empresas estatais e a falta de apoio aos pequenos agricultores continua gerando a migração maciça de trabalhadores mexicanos para os Estados Unidos. Ao mesmo tempo, o aumento da repressão na fronteira, iniciado em 1994 com a criação da operação Gatekeeper (que coincidiu com a implementação do NAFTA), tem gerado cada vez mais mortes. Em 1999, o número de mortes registradas nas tentativas de cruzar a fronteira foi de 325 e, em 2000, esse número chegou a 491.
A intenção de ampliar o número de maquiladoras no México e na América Central, através do Plano Puebla-Panamá, é parte de uma estratégia econômica neoliberal, que visa desmantelar os setores públicos e a pequena agricultura. Além da exploração de mão-de-obra barata nas maquiladoras, o Plano Puebla-Panamá prevê a implementação de grandes latifúndios agrícolas para a produção de alimentos transgênicos. Em preparação para o NAFTA, o ex-presidente Carlos Salinas modificou o artigo 27 da Constituição mexicana, permitindo a divisão e venda de terras que haviam sido destinadas à reforma agrária. Assim como o NAFTA acelerou esse tipo de política, o Plano Puebla-Panamá faz parte do projeto de implementação da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas).
Além de seu impacto social e econômico, o Plano Puebla-Panamá representa um modelo neocolonial de controle de recursos hídricos e biológicos. Somente em Chiapas, as hidroelétricas produzem 55% da energia do país. A região também conta com importantes reservas de gás natural, petróleo, urânio, alumínio e cobre.
A estratégia econômica e militar do governo dos Estados Unidos tem causado forte reação por parte de movimentos sociais em todo o Continente. Essa resistência está refletida na Campanha Continental contra a ALCA, que assumiu a luta contra a militarização como um de seus principais objetivos. É cada vez mais clara a necessidade de denunciar a ligação entre o domínio econômico e militar do governo estadunidense na América Latina. Portanto, a Campanha Continental contra a ALCA propõe:
-- Maria Luisa Mendonça é diretora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e membro da coordenação da Campanha Continental contra a Militarização.